O Avarento

Este artigo é um capítulo de O Templo do Rei Salomão

Sobre o Teísta.

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O Avarento
«ou o Teísta»

“Deus”. Que tesouro de riquezas jaz enterrado nessa palavra! que mina de pedras preciosas! – Ptah, Pai dos Princípios, aquele que criou o Sol e a Lua; Nu, azul, senhora estrelada do Céu, concubina e mãe dos deuses; Ea, Senhor das Profundezas; Istar – “Ó Tu que és colocado no céu como um diadema de pedra da lua”; Brahma o dourado, Viṣṇu o sombrio e Śiva o carmesim, banhados em mares de sangue. Em por toda parte nós Te encontramos, ó Tu único e terrível Eidolon, que como Aormuzd uma vez governou as planícies queimadas pelo sol do Eufrates, e como Odin as ondas geladas e os ventos estridentes, ao redor dos salões congelados do Norte.

Por toda parte! – por toda parte! E ainda agora Tu és novamente Deus, sem nome para os eleitos – Ó Tu, vasto e inescrutável Pleroma construído no Nada de nossa imaginação! – e para os pequeninos, as crianças que brincam com as unidades da existência, apenas uma boneca com uma miríade de nomes de um côvado de altura, uma coisinha para brincar – ou senão: um velho Pai barbudo, com cabelos brancos como lã, e olhos como chamas de fogo; cuja voz é como o som de muitas águas, em cuja mão direita tremem as sete estrelas do Céu, e de cuja boca sai uma espada flamejante de fogo. Lá sentas contando os orbes do Espaço e as almas dos homens: e trememos diante de Ti, adorando, glorificando, suplicando, implorando; para que Tu não nos jogues de volta na fornalha da destruição, e não nos coloque entre o ouro e a prata de Teu tesouro.

É verdade que foste o grande Avarento dos mundos, e as Balanças de Tua tesouraria pesaram o Céu e o Inferno. Tu acumulaste em Tua volta o saque dos anos e a pilhagem do Tempo e do Espaço. Tudo é Teu, e não possuímos nem mesmo o fôlego de nossas narinas, pois isso nos é dado com a usura de nossas vidas.

Ainda assim, da casa de contas do Céu, Tu nos dotaste de um espírito de grandeza, uma imaginação da vastidão do Ser. Tu nos tiraste de nós mesmos, e contamos Contigo as hostes estreladas da noite, e desamarramos as tranças emaranhadas dos cometas nos campos do Espaço. Temos andado Contigo em Mamre, falado Contigo no Éden e ouvido Tua voz do meio do redemoinho. E às vezes Tu tens sido um Pai para nós, uma alegria, forte como um poderoso gole de vinho antigo, e nós Te recebemos de bom grado!

Mas Teus servos – aqueles egoístas, usurários sacerdotais – Veja! como eles tem destruído os corações dos homens, e acumulado o tesouro das Almas nas mãos de poucos, e empilhado os cofres da Igreja. Como eles arrancaram de nós os próprios emblemas da alegria, arrancando nossos olhos com os ferros quentes da extorsão, até que cada libra de carne humana foi ensopada como uma esponja sedenta em uma fonte de sangue: e a vida se tornou um inferno, e os homens e mulheres seguiram cantando, vestidos com o sambenito pintado com chamas e demônios, para a fogueira; para buscar no fogo o Deus de seus antepassados – aquele Juiz severo que, com espada em mãos,  outrora costumava ler os nomes dos vivos no Livro da Vida e exaltar os humildes no trono de ouro dos tiranos.

Ainda assim, nestas eras de crucifixo, de crânio e de vela; estas eras de auto-da-fé e in pāce; nestas eras, quando a língua tagarelava loucura e o cérebro cambaleava em delírio, e os ossos se partiam e a carne era esmagada em polpa, ainda havia na escuridão um glamour da verdade, como um grande e escarlate pôr do sol visto pela memória de anos. A vida era uma mortalha de horror, mas ainda assim era vida! Vida! a vida na horrível e hedionda grandeza da escuridão, até que a morte cortasse o enfadonho fio vermelho com uma espada torta de chama cruel. E o Amor, um êxtase selvagem e louco, de asas quebradas, vibrando diante das órbitas sem olhos do Mal, enquanto as almas dos homens eram compradas, vendidas e trocadas, até que o Céu se tornasse uma bugiganga dos ricos, e o Inferno um calabouço do devedor para o pobre. No entanto, entre aqueles ossos apodrecendo no oubliette, e naqueles palácios roxos da luxúria papal, pairava aquele espírito de vida, como uma chama dourada envolvida em uma nuvem de fumaça sobre o altar escuro da decadência.

Ouça: “Você tem religião? … Você está salvo? … Você ama Jesus?” … “Irmão, Deus pode salvá-lo. … Jesus é amigo do pecador. … Repouse sua cabeça em Jesus … querido, querido Jesus!” Maldição até que o trovão abale as estrelas! maldição até que essa blasfêmia seja amaldiçoada da face do céu! maldição até que o sibilante nome de Jesus, que se contorce como uma cobra na armadilha, seja expulso do reino da fé! Certa vez, “Eloi, Eloi, Lamma Sabachthani”[1] ecoou na escuridão da Cruz da Agonia; agora Jerry McAuley[2], aquele homem de Deus, malvestido em um Leeds barato de má qualidade, balançando uma lata de Bethel, berra: “Você ama Jesus?” e fala daquele filho místico Daquele que apresentou o sol e a lua, e todas as hostes do céu, como se fosse primo-irmão da Sra. Booth ou da própria tia Sally.

Certa vez, na terra mágica do mistério, o homem buscava o elixir e o bálsamo da vida; agora ele busca “leite espiritual para bebês americanos, extraído dos seios de ambos os Testamentos”. Certa vez, o homem, em seu frenesi, embriagado com o vinho de Iacchus, gritaria para a lua a partir do topo em ruínas de algum templo de Zagræus: “Evoe ho! Io Evoe!” Mas agora, em vez disso, “Embora estivesse cheio de bebida, sabia que a obra de Deus iniciada em mim não seria em vão!”

Assim o nome de Deus é arrotado em cerveja e blasfêmia bestial. Quem não preferiria ser um São Besarião que passou quarenta dias e noites em um espinheiro, ou um São Francisco catando piolhos de sua pele de carneiro e louvando a Deus pela honra e glória de usar tais pérolas celestes em seu hábito, a se tornar um homem cristão evangélico presunçoso e de cara cheia, caminhando para a igreja para o querido Jesus em uma manhã de Sabá, com o livro de orações, a Bíblia e o guarda-chuva, e três moedas em sua luva?


  1. «“Por volta das três horas da tarde, Jesus bradou em alta voz: ‘Eloí, Eloí, lamá sabactâni?’, que significa ‘Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?’” – Marcos 15:34.» ↩︎

  2. «Jerry McAuley (1839-1884) foi um ladrão irlandês que, durante sete anos de encarceramento em Nova Iorque, se converteu ao cristianismo e fundou uma igreja, sendo conhecido como o “apóstolo dos perdidos”.» ↩︎


Traduzido por Alan Willms em 2011; atualizado e anotado em maio de 2023. Ilustração de E. J. Pace.

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