Primeira Palestra: Princípios Básicos

Este artigo é um capítulo de Oito Palestras Sobre Yoga

Uma desmistificação do Yoga e seu significado.

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Primeira Palestra:
Princípios Básicos

Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.

A minha vontade é explicar o assunto do Yoga em linguagem clara, sem recorrer ao jargão ou à enunciação de hipóteses fantásticas, a fim de que essa grande ciência possa ser completamente compreendida como sendo de importância universal.

Pois, como todas as grandes coisas, ele é simples; mas, como todas as grandes coisas, é mascarado pelo pensamento confuso; e, com demasiada frequência, tornado em algo desprezível pelas maquinações da patifaria.

1. Há mais absurdos ditos e escritos sobre o Yoga do que sobre qualquer outra coisa no mundo. A maior parte desses absurdos, que são fomentados por charlatães, baseia-se na ideia de que há algo de misterioso e oriental nele. Não há. Não me procure em busca de obeliscos e odaliscas, manjares turcos, passarinhos ou qualquer outra imagem espalhafatosa dos traficantes de Yoga. Eu estou bem arrumado, mas não sou extravagante. Não há nada de misterioso ou oriental sobre qualquer coisa, como todos que passaram algum tempo de forma inteligente nos continentes asiático e africano sabem. Proponho invocarmos o mais remoto e elusivo de todos os Deuses para lançar luz sobre o assunto — a luz do senso comum.

2. Todos os fenômenos dos quais estamos conscientes ocorrem em nossas próprias mentes e, portanto, a única coisa que temos que observar é a mente; o que é uma quantidade mais constante sobre todas as espécies da humanidade do que geralmente se supõe. O que parecem ser diferenças radicais, irreconciliáveis através da argumentação, são geralmente encontradas devido à obstinação do hábito produzido por gerações de treinamento sectário sistemático.

3. Então precisamos começar o estudo do Yoga observando o significado da palavra. Ela significa União, da mesma raiz sânscrita que a palavra grega zeugma, a palavra latina jugum e a palavra inglesa yoke. (√_Yeug_ — juntar.)

Quando uma dançarina se devota ao serviço de um templo, há um Yoga de suas relações para celebrar. O Yoga, em suma, pode ser traduzido como “luta do chá”, o que sem dúvida explica o fato de que todos os estudantes de Yoga na Inglaterra não fazem nada além de fofocar sobre infindáveis libações de chá Lyons[1].

4. Yoga significa União.

Em que sentido devemos considerar isso? Como a palavra Yoga implica um sistema de treinamento religioso ou uma descrição da experiência religiosa?

Vocês podem notar, por acaso, que a palavra Religião é realmente identificável com Yoga. Significa uma ligação.

5. Yoga significa União.

Quais são os elementos que estão unidos ou prestes a serem unidos quando esta palavra é usada em seu sentido comum de uma prática amplamente difundida no Hindustão, cujo objetivo é a emancipação do indivíduo que a estuda e pratica das características menos agradáveis de sua vida neste planeta?

Eu digo Hindustão, mas eu realmente quero dizer em qualquer lugar da terra; pois pesquisas mostram que são encontrados em todos os países métodos similares que produzem resultados similares. Os detalhes variam, mas a estrutura geral é a mesma. Porque todos os corpos e, portanto, todas as mentes, têm Formas idênticas.

6. Yoga significa União.

Na mente de uma pessoa religiosa, o complexo de inferioridade que explica sua devoção a obriga a interpretar essa emancipação como uma união com o vertebrado gasoso que ela inventou e chamou de Deus. No vapor nebuloso de seus medos, sua imaginação lançou uma enorme sombra distorcida dela mesma, e ela está devidamente aterrorizada; e quanto mais ela se encolhe diante da sombra, mais o espectro parece se inclinar para esmagá-la. Pessoas com essas ideias nunca chegarão a lugar algum além de manicômios e igrejas.

É por causa deste esmagador miasma de medo que todo o assunto do Yoga se tornou obscuro. Um problema perfeitamente simples foi tornado complexo pelo mais desprezível absurdo ético e supersticioso. No entanto, o tempo todo a verdade está evidente na própria palavra.

7. Yoga significa União.

Agora podemos considerar o que o Yoga realmente é. Vamos espiar por um momento a natureza da consciência em ciências tais como a matemática, a biologia e a química.

Na matemática, a expressão a mais b mais c é uma trivialidade. Escreva a mais b mais c é igual a 0, e você obtém uma equação a partir da qual as verdades mais gloriosas podem ser desenvolvidas.

Na biologia, a célula se divide infinitamente, mas nunca se torna nada diferente; mas se unirmos células de qualidades opostas, masculina e feminina, estabelecemos as bases de uma estrutura cujo ápice é inatingível nos céus da imaginação.

Fatos semelhantes ocorrem na química. O átomo por si só tem poucas qualidades constantes, nenhuma delas particularmente significativa; mas assim que um elemento se combina com o objeto de sua fome, obtemos não apenas a produção extática de luz, calor e assim por diante, mas também uma estrutura mais complexa, com poucas ou nenhuma das qualidades de seus elementos, mas capaz de mais combinações em complexidades de sublimidade surpreendente. Todas essas combinações, todas essas uniões, são Yoga.

8. Yoga significa União.

Como devemos aplicar essa palavra aos fenômenos da mente?

Qual é a primeira característica de tudo no pensamento? Como afinal ele chegou a ser um pensamento? Apenas por uma distinção entre ele e o resto do mundo.

A primeira proposição, o modelo de todas as proposições, é: S é P. Deve haver duas coisas — coisas diferentes — cuja relação forma conhecimento.

Yoga é antes de mais nada a união do sujeito e do objeto da consciência: do observador com a coisa observada.

9. Ora, não há nada de estranho ou maravilhoso em tudo isso. O estudo dos princípios do Yoga é muito útil para o homem comum, mesmo que apenas para fazê-lo pensar sobre a natureza do mundo como ele supõe que o conhece.

Vamos considerar um pedaço de queijo. Dizemos que ele tem certas qualidades, forma, estrutura, cor, solidez, peso, sabor, cheiro, consistência e o tudo mais; mas a investigação mostrou que isso tudo é ilusório. Onde estão essas qualidades? Não estão no queijo, pois observadores diferentes o descrevem de maneiras bem diferentes. Não estão em nós mesmos, porque não as percebemos na ausência do queijo. Todas as “coisas materiais”, todas as impressões, são fantasmas.

Na realidade, o queijo nada mais é do que uma série de cargas elétricas. Descobriu-se que mesmo a qualidade mais fundamental de todas, a massa, não existe. O mesmo vale para a matéria em nossos cérebros, que é parcialmente responsável por essas percepções. Quais são então essas qualidades das quais todos estamos tão certos? Elas não existiriam sem nossos cérebros; elas não existiriam sem o queijo. Elas são os resultados da união, isto é, do Yoga, do observador e do que é observado, do sujeito e do objeto na consciência, como diz a frase filosófica. Elas não têm existência material; elas são apenas nomes dados aos resultados extáticos dessa forma particular de Yoga.

10. Eu acho que nada pode ser mais útil para o estudante de Yoga do que fixar a proposição acima firmemente em sua mente subconsciente. Cerca de nove décimos do problema ao entender o assunto é todo esse sensacionalismo sobre o Yoga ser misterioso e oriental. Os princípios do Yoga e os resultados espirituais do Yoga são demonstrados em todo acontecimento consciente e inconsciente. Isto é aquilo que está escrito n’O Livro da Lei – Amor é a lei, amor sob vontade – pois o Amor é o instinto de unir, e o ato de unir. Mas isso não pode ser feito indiscriminadamente, deve ser feito “sob vontade”, isto é, de acordo com a natureza das unidades particulares envolvidas. O hidrogênio não tem amor pelo hidrogênio; não é a natureza, ou a “verdadeira Vontade” do Hidrogênio, buscar unir-se a uma molécula de sua própria espécie. Adicione Hidrogênio ao Hidrogênio: nada acontece com a sua qualidade: é apenas sua quantidade que muda. Ao invés disso, ele busca ampliar sua experiência de suas possibilidades pela união com átomos de caráter oposto, como do Oxigênio; eles se combinam (com uma explosão de luz, calor e som) para formar água. O resultado é totalmente diferente de qualquer um dos elementos que o compõe, e tem outro tipo de “verdadeira Vontade”, tal como unir-se (com desengajamento similar de luz e calor) com Potássio, enquanto a “potassa cáustica” resultante tem por sua vez um série totalmente nova de qualidades, com ainda outra “verdadeira Vontade” própria; isto é, unir-se explosivamente com ácidos. E assim por diante.

11. Pode parecer a alguns de vocês que essas explicações arruínam o Yoga; que eu o reduzi à categoria de coisas comuns. Esse foi o meu objetivo. Não há sentido em ter medo do Yoga, ser intimidado pelo Yoga, ficar confuso e se sentir mistificado pelo Yoga, ou se entusiasmar com o Yoga. Se quisermos fazer algum progresso em seu estudo, precisamos de uma mente clara e da atitude científica impessoal. É especialmente importante não nos afligirmos com o jargão oriental. Podemos ter que usar algumas palavras em sânscrito; mas isso é apenas porque elas não têm equivalentes em português; e qualquer tentativa de traduzi-las nos sobrecarrega com as conotações das palavras em português existentes que empregamos. No entanto, essas palavras são muito poucas; e, se as definições que proponho dar a vocês forem cuidadosamente estudadas, elas não devem apresentar dificuldades.

12. Tendo entendido agora que o Yoga é a essência de todos os fenômenos sejam quais forem, podemos perguntar qual é o significado especial da palavra em relação à investigação que propomos, uma vez que o processo e os resultados são familiares para cada um de nós; de fato tão familiares que na verdade não há mais nada de que tenhamos conhecimento. É conhecimento.

O que é que vamos estudar e por que devemos estudá-lo?

13. A resposta é muito simples.

Todo esse Yoga que conhecemos e praticamos, esse Yoga que produziu esses resultados extáticos que chamamos de fenômenos, inclui em suas emanações espirituais uma boa dose de dissabor. Quanto mais estudamos este universo produzido por nosso Yoga, quanto mais coletamos e sintetizamos nossas experiências, mais nos aproximamos de uma percepção daquilo que o Buda declarou ser característico de todas as coisas componentes: Sofrimento, Mudança e Ausência de qualquer princípio permanente. Constantemente abordamos sua enunciação das duas primeiras “Nobres Verdades”, como ele as chamava. “Tudo é Sofrimento”; e “A causa do Sofrimento é o Desejo”. Pela palavra “Desejo” ele quis dizer exatamente o que significa “Amor” n’O Livro da Lei, que eu citei há alguns momentos atrás. “Desejo” é a necessidade de cada unidade de ampliar sua experiência combinando-se com sua oposta.

14. É muito fácil elaborar toda a série de argumentos que culminam na primeira “Nobre Verdade”.

Toda operação de Amor é a satisfação de uma fome amarga, mas a satisfação só torna o apetite mais feroz; de modo que podemos dizer com o Pregador: “Aquele que aumenta o conhecimento aumenta o Sofrimento”. A raiz de todo esse sofrimento está no sentido de insuficiência; a necessidade de se unir, de se perder no objeto amado, é a prova manifesta desse fato, e é claro também que a satisfação produz apenas um alívio temporário, porque o processo se expande indefinidamente. A sede aumenta conforme se bebe. A única satisfação completa concebível seria o Yoga do átomo com o universo inteiro. Esse fato é facilmente percebido e tem sido constantemente expresso nas filosofias místicas do Ocidente; o único objetivo é a “União com Deus”. É claro que só usamos a palavra “Deus” porque fomos criados na superstição, e os filósofos superiores, tanto no Oriente como no Ocidente, preferiram falar da união com o Todo ou com o Absoluto. Mais superstições!

15. Muito bem, então, não há dificuldade alguma; já que cada pensamento em nosso ser, cada célula em nossos corpos, cada elétron e próton de nossos átomos, nada mais é do que Yoga e o resultado de Yoga. Tudo o que precisamos fazer para obter emancipação, satisfação, tudo o que queremos é realizar essa operação universal e inevitável sobre o próprio Absoluto. Alguns dos membros mais sofisticados deste meu público podem estar pensando que há uma pegadinha em algum lugar. Eles estão perfeitamente certos.

16. O problema é simplesmente este. Cada elemento do qual somos compostos está de fato constantemente ocupado com a satisfação de suas necessidades particulares por seu próprio Yoga particular; mas, por essa mesma razão, ele está completamente obcecado por sua própria função, que ele naturalmente considera como a finalidade máxima de sua existência. Por exemplo, se você pegar um tubo de vidro aberto nas duas extremidades e colocá-lo sobre uma abelha na vidraça, ela continuará batendo contra a janela até o ponto de exaustão e morte, em vez de escapar pelo tubo. Não devemos confundir o funcionamento automático necessário de qualquer um dos nossos elementos com a verdadeira Vontade que é a órbita apropriada de qualquer estrela. Um ser humano só age como uma unidade devido a inúmeras gerações de treinamento. Processos evolutivos estabeleceram uma ordem mais elevada de ação Yogica, pela qual conseguimos subordinar o que consideramos interesses particulares a aquilo que consideramos ser do bem-estar geral. Nós somos comunidades; e nosso bem-estar depende da sabedoria de nossas Assembleias e da disciplina com a qual suas decisões são aplicadas. Quanto mais complicados somos, mais elevados estamos na escala da evolução, mais complexa e difícil é a tarefa da legislação e da manutenção da ordem.

17. Em comunidades altamente civilizadas como a nossa (risos altos), o indivíduo está constantemente sendo atacado por interesses e necessidades conflitantes; sua individualidade é constantemente assaltada pelo impacto de outras pessoas; e em um número muito grande de casos ele é incapaz de enfrentar a tensão. A “esquizofrenia”, que é uma palavra adorável, e pode ou não ser encontrada nos seus dicionários, é uma queixa extremamente comum. Significa a divisão da mente. Em casos extremos, temos os fenômenos da personalidade múltipla, Jekyll e Hyde, até mesmo mais. Na melhor das hipóteses, quando um homem diz “eu” ele se refere apenas a um fenômeno transitório. Seu “eu” muda conforme ele pronuncia a palavra. Mas — filosofia à parte — é cada vez mais raro encontrar um homem com uma mente própria e uma vontade própria, mesmo nesse sentido modificado.

18. Portanto, eu quero que vocês vejam a natureza dos obstáculos à união com o Absoluto. Por um lado, o Yoga que praticamos constantemente não tem resultados invariáveis; há uma questão de atenção, de investigação, de reflexão. Em uma instrução futura, proponho tratar das modificações de nossa percepção assim causadas, pois elas são de grande importância para a nossa ciência do Yoga. Por exemplo, o caso clássico dos dois homens perdidos em uma floresta densa à noite. Um diz ao outro: “Aquele cachorro latindo não é um gafanhoto; é o rangido de uma carroça”. Ou novamente, “Ele pensou ter visto o bancário descendo de um ônibus. Ele olhou de novo e viu que era um hipopótamo”.

Todo mundo que fez qualquer investigação científica sabe dolorosamente bem como cada observação deve ser corrigida repetidamente. A necessidade de Yoga é tão amarga que nos cega. Somos constantemente tentados a ver e ouvir aquilo que queremos ver e ouvir.

19. Portanto, cabe a nós, se desejamos realizar o Yoga universal e final com o Absoluto, dominar todos os elementos do nosso ser, protegê-lo contra toda guerra interna e externa, intensificar todas as faculdades ao máximo, nos treinarmos em conhecimento e poder ao máximo; de modo que, no momento apropriado, possamos estar em perfeitas condições para nos atirarmos ao forno de êxtase que arde do abismo da aniquilação.

Amor é a lei, amor sob vontade.


  1. «“Lyons de 1s. 2d” no original, ou seja, um chá que custava 1 xelim e 2 pénis na moeda inglesa da época. A Lyons possuía uma grande rede de casas de chá.» ↩︎


Traduzido e anotado por Alan Willms em abril de 2019.

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