A Barca

Uma peça de mistério.

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A Barca[1]

Uma Peça de Mistério

por

Saint Edward Aleister Crowley, 33°, 90°, 96°, X° P.G.M., U.S.A., etc. etc. etc.

Para Theodor Reuss

Publicação da A∴A∴ em Classe C.

Sub figūra DCCC[2]

Personagens do Mistério

Julia, uma sacerdotisa

Joanna, uma virgem

John, sumo sacerdote do Sol

Julian e Jovian; os vigilantes dele

Um chinês

Um árabe

Um zulu

Nu, um navegador

O Jovem John

Coral de homens, mulheres e crianças

Cena I – O Templo do Sol.

Há uma coluna atrás de um véu, sobre a qual estão posicionados dois discos que formam uma intersecção, o terrestre e o celestial, a parte cortada formando uma verdadeira Vesica, na qual se encaixa um relicário, capaz de ser aberto e removido à vontade. A coluna é de ouro e marfim. O véu é de um azul celeste.

Diante desta coluna, mas do lado de fora do véu, há uma única vela ao lado da qual está o sumo sacerdote John. Ele é de idade madura e tem uma barba preta. Ele está vestido com uma túnica dourada bordada de escarlate. Há uma coroa em sua cabeça; em uma mão ele segura um cetro, na outra um orbe. À sua frente há dois tronos, um à direita e um à esquerda, cada um com uma coluna e vela. No primeiro está sentado um jovem com vestes brancas, a cabeça descoberta; sua mão esquerda segura uma adaga. No segundo, está sentado um homem adulto com vestes pretas, a cabeça coberta por um capuz e, na mão direita, uma moeda.

Degraus cobertos de algas marinhas conduzem da orquestra (ou auditório) até o palco, e a borda do palco dá a aparência de um cais. Há árvores ao norte; e ao sul, um monte de restos de construção.

Dentro do véu há duas mulheres, uma de cada lado do relicário, uma (Julia) em um manto decotado verde com rosas bordadas, a saia muito fendida, com um cinto cor de rosa e ouro, a outra (Joanna) veste um manto completo azul escuro, coberto completamente por um véu espesso de renda ou gaze prateada. Esta mulher é franzina e jovem, a outra é madura e robusta.

Dentro do véu ouvem-se seis batidas de sinos. Os vigilantes põem-se de pé.

Julian. Salve, Irmão! Acorda o teu coro de vozes jovens, Para que os homens saibam como a inocência se regozija.

Jovian. Assim seja. E tu, por tua vez, projeta Uma resposta de antífonas sonolentas.

1º Semi-coral.

A noite está chegando; o véu de veludo É puxado sobre o dia, delicado e das fadas! Durmam, ó, durmam, nossos olhos de anjo, Cortejai teu beijo com sinfonias Sussurradas em canções de ninar cada vez mais quietas!

2º Semi-coral.

Irmãos, a batalha foi longa? Tudo se acalma para sempre. Aqui o Deus está em seu relicário: Aqui está o Ramo dourado divino; Aqui está a pomba roséa!

1º Semi-coral.

O sonho sugerirá quais múltiplos Mistérios nossa vida pode conter.

2º Semi-coral.

O sono sem sonhos deve armar o temperamento Destinado ao dia futuro.

Joanna.  [Dentro]. Aqui está o milho!

Julia. [Dentro]. Aqui está o vinho!

John. [Dentro]. Vida renascida! Ó ação divina! [Uma pausa]. Até que pela manhã eu feche o relicário.

Julia. [Dentro]. Suavemente esplêndido, para seu descanso Rouba a divindade – para o meu peito!

Joanna.  [Dentro]. Mudo, magnificamente masculino, Escondido no véu sagrado, Tu e eu preparamos o rito Desta noite de seu deleite.

John. [Dentro]. Cada irmão em sua ala! Cada mão no punho da espada! Cada broquel em seu braço, Para que o Sagrado não seja ferido!

[Do lado de fora, um choque de aço.

Coral.  Os senhores guerreiros estão acordados e alertas, Trezentas lâminas de aço estão nuas. Seus sessenta cabos permanecem estáveis. Cinco capitães, todos alertas e prontos, Vigiam, com corações de leão, por qualquer surpresa, Já que cada homem tinha cem olhos.

[Mais uma vez, o choque de aço. Depois é tocada uma música (Julia e a Orquestra), cada vez mais suave. À medida em que ela vai desaparecendo, a partir das árvores entram três homens: um Chinês armado com um açoite e uma corda, um homem vermelho, como um Árabe, com um martelo e três pregos, e um chefe guerreiro, como um Zulu, com uma azagaia. Eles se movem um tanto furtivamente e como se estivessem com medo. O Chinês aborda Jovian.

Chinês. Eu sou o dragão, irmão do seu sacerdote, E viemos do norte, do sul e do leste Para construir um relicário novo e mais nobre para o seu deus.

Jovian. Dê-me o sinal. [Feito, cada um segurando a garganta do outro.] O sinal é rigoroso, afirmado. Tu tens a palavra sagrada? [Sussurrada.] A palavra foi dita corretamente. Você tem a prova secreta? [Dada, cada um estendendo o dedo indicador e golpeando-o contra o do outro.] A prova está em ordem. Passe para o meu irmão vigilante!

[Eles passam para Julian.

Árabe. Eu sou o irmão camelo do seu sacerdote, E viemos do norte, do sul e do leste Para construir um relicário novo e mais nobre para o seu deus.

Julian. Dê-me o sinal. [Feito, cada um batendo no peito cinco vezes com a mão fechada.] O sinal é rigoroso, afirmado. Tens a palavra sagrada? [Sussurrada.] A palavra foi dita corretamente. Você tem a prova secreta? [Dado, cada um fazendo uma varredura ampla com o braço, batendo uma mão contra a outra e, em seguida, apertando.] A prova está correta. Saudações a todos! Avancem para o véu!

[Eles avançam. O homem negro entra, seus companheiros abrindo o véu.

Zulu. Eu sou teu irmão, sacerdote. Do norte, do sul e do leste, Viemos para construir um relicário Novo e mais nobre do que o teu.

Chinês. Essas cordas podem amarrar; este flagelo Minha miríade de escravos pode incitar.

Árabe. Este martelo e pregos são suficientes Para atiçar fogo a partir do gelo.

Zulu. Eu ergo minha lança, e cinquenta reis prestam Seu serviço ao seu senhor guerreiro.

[_John _permanece em silêncio e não se move.

Chinês. Vamos, deixa-nos entrar para reconstruir o relicário!

John. Dê-me o sinal. [Feito, o Zulu movendo sua mão para o joelho do sacerdote. John não se move.] O sinal está errado.

Árabe. Não foi feito rigorosamente? Eu tenho a palavra [Sussurra.]

John. A palavra está errada.

Zulu. Não foi dita corretamente? Eu tenho a prova. [Dá levantando a mão e abaixando-a, tentando agarrar a mão de John*.* John não se move.]

John. A prova está errada. Vós não podeis avançar.

Chinês. Ai de ti, tu deves nos deixar!

[O Chinês tira todas as vestes de John, exceto o robe interno branco, e o amarra à coluna. Ele o açoita à música de Julia até que o manto branco fique vermelho de sangue.

Chinês. Dá-me o segredo do relicário!

John. Ele não me pertence.

[O Árabe empala John pelas mãos e pelos pés com seus três pregos.

Árabe. Dá-me o segredo do relicário!

John. Ele não me pertence.

[O Zulu enfia sua lança no corpo de John.

Zulu. Dá-me o segredo do relicário!

John. Ele não me pertence.

[Ele morre.

Coral [Do lado de fora].

Como foi falado da terra, E como o oceano testemunha, Aquilo que o inverno trouxe à luz Encontra na primavera sua morte. Agora que a palavra se cumpriu, Que osso é pó e carne é grama, Misturemos nossas aclamações De júbilo e lamentações!

Não são o bom e o mau um só Diante do desafio do sol? A necessidade relaxará A fúria descarada de suas feições, E sua cimitarra de aço se transformará em cera Devido à reclamação de suas criaturas?

O Senhor está morto; lamentemos A Palavra que foi anulada, a Obra tornada em vão. Cumprindo seu evento obscuro, Vamos nos alegrar; o Senhor está morto.

Zulu. [Para os vigilantes]. Removam o corpo.

[Julian e Jovian apagam suas velas, avançam e soltam John, colocando-o entre suas colunas. Julian o cobre com um pano, e Jovian joga um ramo de acácia sobre ele.]

[Para as mulheres] Abram o relicário para nós!

Julia. O segredo não é seu e nem meu!

[Ela e Joanna abrem as portas da Vesica. Um clarão de luz faz os três rufiões cambalearem. Eles fogem distraídos e cegos ao redor do Templo, e finalmente afundam entre os escombros no sul.

[Julia e Joanna soltam as portas ao mesmo tempo. Estas voltam e deixam o palco iluminado apenas pela única vela do sumo sacerdote.]

Uma voz do relicário.

Vinguem a violação! Não deixem ninguém escapar!

Uma voz do extremo oeste atrás do público.

Os céus liberaram as fontes de Inundações sobre as montanhas!

Julian. [No cais]. Ó, Nu! Ó, Nu! Não deixa nenhum homem sair do cais Sem as provas do verdadeiro grau!

Nu.    [Abaixo]. Eu ouço e obedeço. Qual é a carga de hoje?

Coral.  Não há ouro na terra Para pagar um centésimo de seu valor. Não há tesouro de safira, Nenhum rubi escondido que se compara; Nenhum diamante tem fogo ilustre Além do fardo que carregamos; Nem onde as ondas do oceano rodopiam Há caverna como uma tal pérola.

Nem o céu em todas as suas horas mais felizes Tem um presente tão gracioso como o nosso. Nele todos os princípios são inerentes; Para ele todos os elementos conspiram; Dele todas as energias reverenciam, Dele o desejo inescrutável! A humanidade, amadurecida de uma miríade de úteros. É apenas o jardim onde floresce.

Jovian. Ó, mas o fardo que carregamos é precioso demais. É o próprio sacerdote de Deus, o único herdeiro do relicário, Cujo cadáver deve voar para o ar inferior.

Nu.    [Subindo os degraus]. Não tenho nenhum navio digno de tal carga.

A voz do relicário.

Sim, mas tu tens.

Nu.    A mais antiga é sua data. Temo que muitos mares a têm castigado, E o tempo a devorou; um crime corrosivo Do êon selvagem. Ó! tu esposa das águas! Nossos três filhos robustos e nossas três filhas fortes, Pedem que descubram se a velha barca está sadia.

A voz do oeste.

Cuidado! Cuidado! os Senhores do Céu confundem As cidades, e seus habitantes são afogados.

Julian e Jovian.  Nós partimos; o corpo de nosso mestre deve ser cuidado.

[Eles vão até o corpo e se ocupam com ele.]

Chinês. Ó, que nossas vidas miseráveis tivessem se acabado!

Árabe. Maldito seja este braço direito que estendeu o martelo!

Zulu. Essa maldita lança, que partiu aquele coração sagrado!

Chinês. Eles nos caçam, querem nossas vidas.

Árabe. Os soldados procuram. Agora nosso destino ri e nos deixa em apuros.

Zulu. Não podemos nos esconder do outro lado do mar?

Chinês. Quem ajudará pessoas como nós?

Árabe. Venham, vamos tatear em busca da eternidade!

Zulu. Ódio, desespero e culpa ainda perseguem nosso caminho.

Chinês. Pois o resultado do assassinato é a miséria.

[Música assustadora e obscura. Eles tateiam como cegos pelo palco de quatro e alcançam o cais.]

A voz do oeste.

Nas montanhas ainda caem as chuvas vingadoras, E a inundação violenta ainda engole as planícies.

A voz de baixo.

Pai, ó pai Nu! Ó pai Nu! Que milagre é esse – tremendamente verdadeiro? A velha barca se renovou!

A voz do relicário.

Como deveria envelhecer uma barca Cujas madeiras virgens seguram Minha terrível arca de ouro?

Zulu. Será que ouço alguém falar de barcas?

Chinês. Ouça, meu senhor, a estes lábios que não são mentirosos.

Árabe. Leva-nos a bordo; navegamos para onde a fome não aperta Mais três pobres mendigos cegos.

Nu.    [Falando à parte]. Talvez Estes sejam os três assassinos! [Em voz alta] Vocês têm as provas do verdadeiro grau?

[Eles se acovardam.

Chinês. Ah, então a esperança acabou para sempre!

Árabe. Vamos nos esconder Além das fronteiras desta maré traiçoeira; Senão ela poderá nos alcançar enquanto dormimos.

Zulu. Queria que estivéssemos mortos! No entanto, a vida vale um salto.

Chinês. Ó Deus, tatearemos eternamente Este deserto sem esperança!

Árabe. Ó, mas este voo sem fé É uma morte eterna.

Zulu. O ódio é um inferno mais afiado e mortal Do que todas as armas do torturador.

[Eles retornam à pilha de escombros.

Julian. Tudo está preparado. Busquem então mais uma vez comigo Os rastros dos três fatais!

[Ele encontra Chinês.

Aqui está o primeiro dos vilões. [Para o relicário] Fale, Que vingança devemos infligir!

Jovian. As flores fantasmas mais nojentas do medo Disparam da alma dele como serpentes!

A voz do relicário.

Cortai sua garganta de orelha a orelha! Arrancai sua língua pela raiz! Jogai o corpo no escuro Numa corda da marca d’água alta!

[Isso é feito, o corpo sendo jogado do cais.

A voz do oeste.

As árvores estão cobertas: a chuva flui Sobre os berros e gritos!

A voz de baixo.

A água beija a quilha do navio!

Jovian. Fora com o aço! [Ele captura o Árabe.] Aqui está o segundo rufião: [Para o relicário] Diga Qual o preço que sua ação deve pagar!

Julian. Ouça a língua que era tão loquaz, Gaguejar, cuspir, sua fúria louca!

A voz do relicário.

Cortai seu peito de costela a costela! Arrancai seu coração, atirai-o para fora Onde os abutres possam ouvir Seu horror do Universo.

[Isso é feito no oeste, mas acima do cais.

A voz do oeste.

As colinas estão cobertas; a chuva guincha Ainda mais feroz nos picos.

A voz de baixo.

A água levanta a barca; ela endireita.

Julian. Ah! Mais nojenta das visões nojentas! Aqui está o terceiro e maior vilão. [Ele captura o Zulu.] [Para o relicário] Diga, Nosso Deus, a maneira que ele deve morrer?

Jovian. Do preto ao verde cresce o vazio do horror Doente da alma fedorenta!

A voz do relicário.

Cortai seu umbigo, flanco a flanco! Rasgai as entranhas; seja o todo Queimado até cinzas no centro! O esquecimento negro o apaga! Bani todo traço que possa reentrar Qualquer memória do homem!

[A sentença é executada.

A voz do oeste.

As montanhas estão todas cobertas; a chuva ruge Agora em um mar que não tem costas!

A voz de baixo.

Depressa! o navio desliza na espuma. Depressa! deixai a casa infeliz!

[Julian e Jovian carregam o corpo de John descendo os degraus do cais, e assim para fora, seja para a orquestra ou para o fundo do teatro. Eles são seguidos por Julia e Joanna, que carregam a sagrada Vesica em seus braços.

Nu.    Parti! três filhos se dobram aos remos de bombordo, E três filhas fortes guarnecem os remos de estibordo. Minha esposa espiará, enquanto eu navegarei, praias dignas De receber como lar nosso Argonauta.

[Julia toca música. Ouve-se o vento subindo e as ondas quebrando, até que uma rajada de vento apaga a última vela do palco, quando a cortina cai. O sino bate doze badaladas. Ao longe, ouve-se o canto dos marinheiros, primeiro forte e próximo, desvanecendo gradualmente.

Através da tempestade, em direção à escuridão, Ara a barca do destino, Carregado com a arca sagrada.

Toda a terra está encharcada e afogada. Todas as outras barcas estão danificadas: Só nós estamos voltando para casa.

Arreados para a eternidade, O único santuário da vida, Só nós encaramos o mar de inverno.

Devemos avistar a costa ondulante, Afrouxar a vela e embarcar o remo, Ouvir a âncora chacoalhar e rugir.

Através da tempestade, em direção à escuridão, Ara a barca do destino, Carregada com a arca sagrada.

[A música de Julia, que se tornava mais fraca e distante, agora finalmente acaba.

Cena II

[Uma cena de floresta: primavera. Em uma colina, no meio, há uma árvore estéril, com dois galhos principais à direita e à esquerda. De cada lado da árvore há uma pedra plana.

[A cena está no escuro; depois de um pouco de música lenta, muito fraca e hesitante, as vozes das mulheres são ouvidas. Elas estão sentadas nas pedras, suas atitudes expressando tristeza e ansiedade.

Joanna.  Irmã, nós tocamos a hora do medo. A escuridão mais intermediária está próxima.

Julia. Não há nenhum sinal, nenhuma marca Para separar as trevas das trevas.

Joanna.  Não há marca nem sinal Do nosso relicário perdido.

Julia. A persuasão da cova Nos fez abandoná-la.

Joanna.  Não, pela inescrutável Lei de toda a Vida ela caiu.

Julia. Essa é a luz?

Joanna.  A benção Da lua pura?

[Longe no alto, brilha uma lua crescente que emite uma luz pálida. Uma horrível discórdia surge: o uivo de lobos, o gemido de cães, o miado de gatos, o grito de chacais. E à meia-luz aparecem primeiro fogos fátuos vagando, depois as ilusões gigantes de deuses e homens, todos os quais desaparecem um de cada vez, seu desaparecimento desperta uma gargalhada zombeteira. As mulheres se encolhem, agarrando-se à árvore e misturando suas lamúrias ao concerto infernal. De repente Joanna, levantando-se, aponta para a frente do palco, onde há uma lagoa circular, cujas águas se agitam. Os ruídos morrem. Ouve-se um barulho de cânticos.

Coral de baixo.

Sonhos diluvianos amedrontam as ousadas filhas Que, devotas na hora das águas perdidas, Aqui tiraram de sua antiga casa o relicário. Sonhos, demônios e coisas mortais, juntos, Um coral glorioso, selvagem como o vento e o clima, Zombando; Brilha, ó nosso Deus! Senhor Deus, agora, brilha!

O símbolo da Vida realmente se foi? Encontrou o áugure de fato um cordeiro primogênito Sem coração, e a pomba sem entranhas? A esperança do mundo está para sempre perdida? Nosso sonho foi sombrio, demente, embriagado? Em vão prestamos juramentos diante dos véus?

Fomos falsos quanto à fé? A esperança nos abandonou? Não foi o amor leonino a graça que nos cingiu? Por que então carregamos o relicário para o outro lado do mar? Espere! o momento da escuridão revela O amanhecer, carregado de rosas, os ventos de março. Gemidos de parto anunciam que o bebê nasce.

Agora as ondas da lagoa estão agitadas; o oceano Entra em labor; a Terra está acordada; um movimento murmurado Marca o fim do tema trágico. Veja Como o jardim de Pã com risos sutis Sacode, como Baco e Ceres, rindo atrás, Ligam extravagantes ramos de rosa e ouro!

[Em silêncio, por fim, um grande Besouro emerge do lago, segurando nas mandíbulas a sagrada Vesica! Ele avança, enquanto as mulheres se prostram, e o afixa na Árvore, logo acima da bifurcação dos ramos.

[Julia toca uma música ainda lenta e triste, mas com um núcleo central de fé, esperança e amor.

Joanna.  Morada eterna de luz e amor, De vida e liberdade, Tu relicário de serafim, cúpula de pomba, Alma da Árvore sagrada, Arca do santuário, Taça Na qual o sangue de Deus é entesourado! Do abismo tu reapareces, Tu, o mais divino e o mais querido!

Lua do nosso amor, ventre mais maravilhoso, Monte da Caverna, rosa vermelha – Poderosa como a luz, transcende a tumba, Tu, tumba de todas as nossas aflições! Lua branca, lua pálida, lua casta, surja Sobre nossos relicários feridos! Tu passaste pelas fúrias aquarianas, Tu barca de todos os sábios!

[A música de Julia aumenta e se torna um peã. Acima da árvore avista-se um arco-íris.

Julia. As sete cores brilham na escuridão. Este é o momento mais central da Obra.

Joanna.  Ouça! Agora os vigilantes trazem o esquife De seu Mestre morto para cá.

[Coral de guardiões invisíveis, como na Cena I. O choque de aço acompanha este canto.

Bem-aventurados os que levam o esquife Para a casa de descanso; Através da labuta da tempestade e do medo inundante, Das ondas selvagens do oeste! Bem-aventurados aqueles cuja força e fé Pilotam a barca cujo nome é Morte!

Avançando sempre para o leste, Os santos peregrinos caminham. Para o Deus vivo vem o sacerdote morto Para enfrentá-Lo face a face, Para que porventura Ele reverta a condenação E arranque seu troféu do túmulo.

[Os vigilantes agora se aproximam e colocam o corpo do sacerdote, ainda em sua mortalha, aos pés da Árvore.

Julia. Agora, sejais testemunhas da Verdade! Aqui, que a lascívia do amor produza a juventude!

[Ela levanta as mãos para o céu.

Joanna [Avança e invoca próxima ao relicário]. Agora, que meu senhor declarar Seu poder Nesta hora equinocial! Se houver virtude na dança, E vida dentro da lança, E se o vinho dentro da taça For a bebida certa para os deuses cearem – Então que dancemos à música de minha irmã, Com uma canção em resposta, e rosas derramadas!

[Julia dança e brinca em volta do cadáver. A orquestra se junta após os primeiros compassos, e inúmeras rosas caem do céu. Uma pausa, enquanto eles observam.

Julia. Ai de mim! nenhuma vida repousa Sob a chuva de rosas!

Joanna.  Ó, então, sob a cúpula abobadada Seja nosso sacerdote exaltado!

[As duas mulheres e os vigilantes levantam o cadáver e o colocam de pé contra a árvore, com os braços estendidos sobre os galhos.

Joanna.  Agora, sejais testemunhas da verdade! Aqui, que a lascívia do amor produza a juventude!

Julia. Descubram, descubram o rosto do nosso amante! Ele dorme, mas a desgraça do inverno acabou! Com lágrimas reguemos a raiz da árvore! Com risos sejais ousados para despertar o caule! Tua querida, tua filha, está chamando por ti! Teus vigilantes te sustentam, responda a eles! Que o botão vibre de sangue. Que a força do dilúvio Da seiva cubra cada antera invisível! Que a chuva de nosso poder traga o renascimento da flor, E que a única luz do sol irrompa em vermelho e o verde!

Joanna.  Infelizmente, ele não se mexe! Doloroso, sinistro, É o nome deste dia, Esta hora de vergonha!

Julia. Vede! Vede! A rosa irrompe, e ouro! [O amanhecer surge na floresta.] E veja a mortalha funeral Branca e fria cair!

[As bandagens caem do cadáver, e o jovem John é visto sem barba e sorridente. Ele está vestido com a coroa e as vestes de seu pai.

John Jovem.   Eu sou o que sou, a chama Oculta na arca sagrada. Eu sou o nome não dito, Eu, a centelha que não foi gerada.

Eu sou Aquele que sempre vai, Sendo em mim mesmo o Caminho; Sabendo aquilo que nenhum mortal sabe, Vendo aquilo que nenhum mortal mostrou, Eu, o filho da noite e do dia. Eu sou um jovem que nunca morre. Eu sou Amor e sou Verdade.

Eu sou a Palavra criadora, Eu, o autor do êon; Ninguém senão eu ouviu Ecoar no Plectro Empírico o peã primitivo! Eu sou o eterno Alado e branco, o bastão florido, Eu, a fonte do sol, Vero Deus de vero Deus!

Eu sou aquele que eleva a Vida e a arremessa para longe; Eu enchi a taça de cristal; Eu selei a estrela de prata. Eu, o Deus sem asas que voa Através de meu fane do firmamento, Eu sou aquele que diariamente morre, E diariamente nasce de novo.

No mar jaz meu pai, Lavado pelas águas, perdido para sempre Onde a ruína da desgraça responde: “Nada e em lugar nenhum!” “Nada e nunca!” Eu que sirvo como uma vez ele serviu, Eu que brilho como uma vez ele brilhou, Devo mudar como ele mudou, Devo ir como ele foi.

Ele me gerou; em minha estação Também devo gerar tal filho, Sofrer também a tripla traição, Me pondo como meu pai se pôs. Estas minhas testemunhas e mulheres – Estas devem desafiar a escuridão novamente, Encontrar a arca sagrada para nadar no Reino implacável da chuva.

Flores e frutas eu trago para lhes abençoar, Bolos de milho e riquezas de vinho; Com minha coroa irei acariciá-los, Com minha música farei de vocês meus. Embora eu morra, eu vos preservo; Através da minha queda, vós vos elevareis: Vos governando, sendo vosso sacerdote, eu vos sirvo, Sendo vida e sendo amor.

Joanna.  Aqui está o milho!

Julia. Aqui está o vinho!

John Jovem.   A vida renasce, O Ato Divino!

[Ele consagra e comunga do sacramento. Os dois vigilantes, ajoelhados, agarram seus joelhos e as duas mulheres seguram seus braços. Um badalar de seis sinos. Ele invoca o Deus no relicário.

John Jovem[3].  Tu que és eu mesmo, além de tudo meu; Sem natureza, inominado, ateu; Que quando o mais se esfuma, ficas no crisol; Tu que és o segredo e o coração do Sol; Tu que és a escondida fonte do universo; Tu solitário, real fogo no bastão imerso; Sempre abrasando; tu que és a só semente; De liberdade, vida, amor e luz eternamente; Tu, além da visão e da palavra; Tu eu invoco; e assim meu fogo lavra! Tu eu invoco, minha vida, meu farol, Tu que és o segredo e o coração do Sol E aquele arcano dos arcanos santo Do qual eu sou veículo e sou manto Demonstra teu terrível, doce brilho: Aparece, como é lei, neste teu filho!

Coral.  Assim, do Pai ao Filho O Espírito Santo é a norma: Masculino-feminino, quintessencial, único, Homem sendo velado em forma de Mulher, Glória e adoração no Altíssimo, Tu Pomba, a humanidade que deificastes, Sendo aquela raça - o mais regiamente levada Ao sol da primavera através da tempestade de inverno! Glória e adoração a Ti, Seiva do freixo do mundo, árvore maravilhosa!

1º Semi-coral.

Glória a Ti da tumba dourada! Glória a Ti do ventre que espera!

2º Semi-coral.

Glória a Ti da virgem jurada! Glória a Ti da terra não arada!

1º Semi-coral.

Glória a Ti, verdadeira Unidade Da Trindade eterna!

2º Semi-coral.

Glória a Ti, tu pai e mãe E self do eu sou o que eu sou!

1º Semi-coral.

Glória a Ti, além de todo prazo, Tua fonte de esperma, tua semente e germe!

2º Semi-coral.

Glória a Ti, Sol eterno, Tu Um em Três, tu Três em Um!

Coral.  Glória e adoração a Ti, Seiva do freixo do mundo, árvore maravilhosa!

[Ele levanta suas mãos para o relicário e o abre. Uma luz rosada flui dali e preenche o lugar sagrado, enquanto a Pomba branca que estava conservada ali desce sobre sua cabeça. A árvore desabrocha em folhas, flores e frutos.

(Desce a cortina).



  1. «Optamos por traduzir o termo ship como “barca” ao invés de “navio” por este ser um substantivo feminino, concordando com o uso do pronome she (“ela”) que ocorre ao longo do texto em referência à barca.» ↩︎

  2. «Este texto foi originalmente publicado como The Ship no The Equinox Vol. I No. 10, em setembro de 1913. Ele não estava catalogado como uma instrução oficial da A∴A∴. A classificação sob o número DCCC (800) ocorreria em correspondência privada do autor – Aleister Crowley – e um de seus estudantes, Charles Stansfeld Jones.» ↩︎

  3. «Utilizamos aqui a tradução de Marcelo Ramos Motta.» ↩︎


Traduzido por Alan Willms em julho de 2021.

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