Sofrimento

Este artigo é um capítulo de Pequenos Ensaios em Direção à Verdade

O Transe do Sofrimento.

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Sofrimento

A Aspiração de se tornar um Mestre está enraizada no Transe do Sofrimento.

Este transe não é simples e definitivo; de fato, geralmente começa de uma forma egoísta e limitada.

A imaginação não consegue penetrar além das condições terrestres, nem a sensação de si captar mais do que a consciência natural.

A princípio, a pessoa não pensa nada mais do que isso: “não há nada possível que seja bom o suficiente para mim”. Somente conforme se amadurece pela Iniciação que a pessoa se aproxima da assíntota “sabbé pi Duḥkha”[1] do Buda, quando as relações de sujeito e objeto, ambas expandidas ao infinito, são vistas como não estando menos no âmago da Grande Maldição do que estavam seus primeiros avatares, o Ego egoísta e o Universo perceptível.

Assim também a transcendência deste Transe do Sofrimento. Primeiramente a vitória geralmente ocorre com um truque mental; estendendo o sujeito ou objeto, conforme o caso, por um esforço para escapar da realidade, parece que por um momento a pessoa derrotou a Equação “Tudo é Sofrimento”; mas as nuvens se reúnem conforme a mente recupera seu equilíbrio. Assim, alguém inventa algum “Céu”, definindo-o arbitrariamente como livre de sofrimento: apenas para descobrir, sob exame preciso, que suas condições são as mesmas que as da “Terra”.

Tampouco há qualquer questão racional desse inferno de pensamento. A transcendência do Transe do Sofrimento deve ser feita por meio de outros transes como a Visão Beatífica Superior, o Transe da Maravilha e outros, até mesmo o Transe chamado de a Piada Universal, embora este último seja estranhamente parecido!

Há essa consideração adicional; que todo alvo de contemplação pede apenas que a mente se fixe em um grau muito inferior ao da verdadeira concentração, como assegura Samādhi, para se tornar evidentemente uma ilusão.

Isso foi o suficiente como um breve resumo dos aspectos técnicos do assunto. Mas de fato isso tudo está longe da simplicidade da afirmação d’O Livro da Lei:

Lembrai-vos todos vós de que existência é pura alegria; de que todos os sofrimentos são apenas como sombras; eles passam & estão acabados; mas existe aquilo que resta.

Do que pode depender esta percepção, que afirma varrer com o fogo do desprezo os formidáveis ​​ataques de todo pensamento filosófico sério? A solução deve estar na própria metafísica de Thelema.

E aqui nos deparamos com o que é aparentemente um paradoxo do tipo mais desconcertante. Pois O Livro da Lei, antecipando a mais sutil das concepções matemáticas recentes, a do maior gênio desta geração, faz com que a unidade da existência consista em um Evento, um Ato de Casamento entre Nuit e Hadit; isto é, a realização de um certo Ponto de Vista. E a procissão de eventos não é a própria condição do Sofrimento, como oposta à perfeição da “Existência Pura”? Aquela é a filosofia antiga, um emaranhado de palavras falsas: nós enxergamos mais claramente. Assim:

Todo Evento é um Ato de Amor, e assim gera Alegria: toda a existência é composta apenas por tais Eventos. Mas então como é que pode haver até mesmo uma ilusão de Sofrimento?

Simplesmente por assumir uma Visão parcial e imperfeita. Um exemplo: no corpo humano, cada célula é perfeita, e o homem está em boa saúde; mas se decidirmos considerar praticamente qualquer parte da máquina que o sustenta, aparecerão várias decomposições e coisas semelhantes, o que podem bem ser considerados como se implicassem nos mais trágicos Eventos. E isso seria inevitavelmente o caso se nunca tivéssemos visto o homem como um todo e entendido a necessidade dos diversos processos da natureza que se combinam para formar a vida.

Além disso, para a consciência normal ou dualista, são precisamente as sombras “que passam & estão acabadas” que constituem perceptivelmente: o que o homem “vê” é de fato apenas aquilo que obstrui os raios de luz. Esta é a justificativa para o Buda dizer: “Tudo é Sofrimento”: na palavra “Tudo” ele é muito cuidadoso para incluir especificamente todas aquelas coisas que os homens consideram alegres. E isso não é realmente um paradoxo; pois para ele todas as reações que produzem consciência são, em última instância, cheias de sofrimento, por serem distúrbios da Perfeição da Paz, ou (se você preferir) obstruções ao livre fluxo de Energia.

Assim para ele Alegria e Sofrimento são termos relativos; subdivisões de um único grande sofrimento, que é a manifestação. Não precisamos nos preocupar em contestar essa visão; de fato, as “Sombras” das quais nosso livro fala são aquelas interferências com a Luz causadas pela parcialidade de nossa apreensão.

O Todo é Perfeição Infinita, e assim também cada Unidade dele. Portanto, transcender o Transe do Sofrimento é suficiente para cancelar o sujeito da contemplação, casando-o com o seu igual e oposto na imaginação. Podemos também buscar o método analítico e resolver o complexo que parece Sofrimento em seus átomos. Cada evento é um ato de Amor sublime e alegre; ou o método sintético, procedendo da parte para o Todo, com um resultado similar.

E qualquer um dos movimentos da mente é (com assiduidade e entusiasmo) capaz de transformar o Transe do Sofrimento em si mesmo no Transe cognato atribuído ao Entendimento, o Transe da Maravilha.

 

[1] «“Tudo é Sofrimento” em páli.»


Traduzido por Alan Willms em novembro de 2019.

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