O Escravo

Este artigo é um capítulo de O Templo do Rei Salomão

Uma extensa biografia mágica baseada no diário de Frater Perdurabo.

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Leia em 7 min.

O Escravo

A abóbada azul do céu está vermelha e rasgada como a ferida de uma boca sem língua; pois o Ocidente desembainhou sua espada, e o Sol encontra-se sufocando em seu sangue. O mar geme como um noivo apaixonado, e com os lábios trêmulos toca os seios inchados da noite. Então as ondas e as nuvens se unem, e como amantes que estão enlouquecidos pelo fogo de seus beijos, se misturam e se tornam um.

Venha, prepare o banquete nos salões do Crepúsculo! Venha, derrame o vinho escuro da noite, e traga a harpa extremamente-sonora da noite! Rasguemos de nossos membros flamejantes as vestes empoeiradas da manhã, e, despidos, dancemos no esplendor prateado da lua. Vozes ecoam das trevas, e o murmúrio de muitos lábios acalmam a quietude do dia que parte, como uma chuva na primavera sussurrando entre as folhas das árvores de faia que brotam. Agora os lobos uivam ao longe, e os chacais chamam do matagal; mas ninguém lhes dá atenção, pois tudo lá dentro á como o banco de musgo de um córrego espumante - repleto de brandura e o piscar de muitas joias.

Onde estais, Ó meu amado, cujos olhos são como o azul dos montes longínquos? Onde estais, Ó tu cuja voz é como o murmúrio de águas distantes? Estendo minhas mãos e sinto os juncos balançando ao vento, eu olho através das sombras, pois a névoa da noite está subindo do lago; mas a ti não consigo encontrar. Ah! ali estás tu entre o salgueiro, de pé entre o junco e o lírio-d ‘água, e tua forma é como uma concha de pérolas apanhada pelas ondas ao luar. Venha, vamos enlouquecer a noite com nossos beijos! Venha, vamos beber e secar os tonéis de nossa paixão! Fique! Por que tu foges de mim, como a névoa desperta da manhã antes das flechas do dia? Agora eu não mais posso ver-te; tu se foi, e as trevas te devoraram. Ó, por que tu me deixaste, eu que te amava, e tecia beijos em teu cabelo? Vede, a Lua te seguiu! Agora eu não vejo as sombras da floresta, e os lírios na água tornaram-se apenas manchas de luz na escuridão. Agora eles se misturam e se fundem como flocos de neve diante do sol, e se foram; sim! as estrelas fugiram dos céus, e eu estou só.

Quão fria ficou a noite, quão silenciosa! Ó, onde estais tu! Venha, volte para mim, para que eu não vagueie em vão; me chame para que eu não perca meu caminho! Clareia-me com o brilho dos teus olhos, para que eu não perambule longe do caminho e me torne uma presa para a fome das bestas selvagens!

Estou perdido; eu não sei onde estou; as montanhas cobertas de musgo tornaram-se como colinas de vento, e foram sopradas para longe dos lugares apropriados; e os campos ondulantes dos vales tornaram-se silenciosos como a terra dos mortos, de modo que eu não os ouço, e não sei aonde caminhar. Os juncos não sussurram ao longo da margem do lago; tudo está quieto, o céu fechou sua boca e não há sopro dele em seu despertar do sono da desolação. Os lírios foram sugados pelas águas gananciosas, e agora a noite dorme como alguma serpente poderosa empanturrada com a carne branca e o sangue quente das trêmulas donzelas da aurora, e os selvagens jovens do meio-dia.

Ó meu querido, meu amado! Se tu apenas te aproximasse como um andarilho no deserto, teu cabelo esvoaçando como um traje de ouro ao teu redor, e os teus seios iluminados com o rubor da aurora! Então meus olhos se encheriam de lágrimas, e eu saltaria na tua direção na loucura de minha alegria; mas tu não vens. Eu estou só, e tremo na escuridão como os ossos esbranquiçados de um gigante nas profundezas de um túmulo de vento.

Há uma terra em que árvores não crescem, e onde o gorjeio dos pássaros é como um sonho esquecido. Há uma terra de poeira e desolação, de onde nenhum rio emana, e onde as nuvens não se levantam das planícies para sombrear os olhos dos homens da areia e do sol escaldante. Muitos são os que se desviam nesse lugar, porque todos vivem no limiar da miséria que habita a Casa da alegria. Lá a riqueza retira suas asas como um pássaro cativo em liberdade, e a fama parte como um sopro dos lábios de um desmaio; o amor se apaixona pelo devasso, e a inocência da juventude é apenas como uma capa para cobrir o horror desnudo do vício; a saúde não é conhecida, e a alegria é corrompida como um cadáver na sepultura; e por trás de tudo permanece o grande mestre de escravos chamado Morte, todo-abrangente com seu chicote, todo-desolador na hediondez nua e na escuridão com a qual ele castiga.

“Eu olhei para todas as obras que minhas mãos fizeram, e eis que tudo era vaidade e aflição do espírito”. Sim! tudo é do pó, e ao pó retornará, e a morte não conhecerá nada. A saúde me deixou, a riqueza se afastou de mim, aqueles a quem eu amo foram tirados de mim, e agora Tu  (Ó meu Deus!) me abandonastes, e me expulsastes, e pondo um lacre em Teus lábios cessastes Teus ouvidos com cera e cobristes os Teus olhos com as palmas de Tuas mãos, para que Tu não me veja e nem me escute, nem responda ao meu amargo clamor . Assim sou expulso de Tua presença e sento-me sozinho como um perdido em um deserto de areia, e choro a Ti, sedento por Ti, e então Te nego e Te amaldiçoo em minha loucura, até que a morte interrompa as blasfêmias de meus lábios com os vermes e a poeira da corrupção, e sou liberto do horror dessa escravidão do sofrimento.

Estou sozinho, sim! sozinho, o único habitante deste reino de desolação e miséria. O Inferno seria como um Paraíso diante desta solidão. Ó, queria que dragões saíssem do abismo e me devorassem, ou que leões me rasgassem em pedaços para sua alimentação; porque a fúria deles seria como leite e mel à amargura desta tortura. Ó, lançai-me um verme, para que eu possa deixar de estar sozinho, e para que em sua contorções na areia eu leia Tua resposta à minha oração! Queria estar na prisão para que eu pudesse ouvir os gemidos dos cativos; queria estar no cadafalso para que eu pudesse ouvir os gracejos indecentes de homens sanguinários! Ó, queria estar na sepultura, ferido pelas raízes das árvores, sem olhos encarando a escuridão da morte!

Entre a noite e a manhã eu nasci, como um cogumelo eu surgi durante a noite. No seio da desolação fui alimentado, e meu leite era como soro, e minha carne como a amargura de aloés. No entanto, eu vivi, porque Deus estava comigo; e temi, porque o diabo estava por perto. Eu não entendia o que eu precisava, eu estava com medo, e o medo era como uma pestilência para minha alma. No entanto, me embriaguei e bebi no copo da vida, e a alegria era minha, e cambaleando eu gritava blasfêmias para a tempestade. Então eu fiquei sóbrio, e joguei dados com o meu entendimento, e trapaceei meu coração, e perdi meu Deus, e fui vendido na escravidão, e me tornei como um verme de caixão à alegria de minha vida. Assim meus dias se obscureceram, e eu lamentei comigo mesmo como o meu espírito me deixou: “Ó, e quanto a hoje que é como a escuridão da noite? Ó, o que será então do amanhã que é como as trevas da Eternidade? Por que viver e instigar o chicote do mestre?” Então eu procurei a faca em meu cinto para romper o fio de minha tristeza; mas a coragem levantou voo com alegria, e minha mão tremia tanto que a lâmina permaneceu em sua bainha. Então eu gritei para mim mesmo: “Em verdade por que eu deveria fazer alguma coisa, pois a própria vida se tornou para mim como uma bainha sem espada” – então eu sentei e me entristeci na escuridão.


Traduzido por Frater V.I.T.R.I.O.L.

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